A encenação de um texto emblemático do teatro do século XX traz implicações adicionais ao trabalho de criação, comparativamente a outras produções. Importa dar a conhecer que esta obra tem um modelo cénico a partir do qual Brecht estabeleceu alguns pontos de apoio para a sua realização. É também um texto e obra que tem acoplado um forte imaginário com o qual lidámos de modo aberto, apropriando-o e transformando-o. Cada trabalho que realizo é como uma viagem de longa duração na qual sucedem um conjunto de acontecimentos marcantes que nos impelem a modificar os modos e os meios com que vivemos. Penso que Brecht desenvolve uma duplicidade das personagens que associei justamente à noção de multi-perspectivas e ao conceito de contraste entre a visão interior e a percepção externa do mundo com que cada um vai aprofundando a existência. A coexistência de personagens com comportamentos contraditórios e plenas de rugosidades existenciais - comportando dentro de si a imitação de modelos e a imaginação própria, a superficialidade e a profundidade - foi um desafio que abraçamos ao escolher este caminho e esta obra.
O ponto de partida para o trabalho de criação em pesquisa foi o texto de Bertolt Brecht, assim como as partituras de Paul Dessau. A procura do respeito por um espírito latente nestas duas fontes condicionou os contornos e fronteiras das nossas decisões. Existiram vários momentos-chave no percurso que realizámos e, com um olhar retrospectivo, creio que importa realçar alguns deles de forma a tornar mais transparente e legível o conjunto de decisões que foram dando substância à obra agora apresentada.
Neste sentido, esta obra segue uma linha de trabalho que vem desde a encenação de As Criadas de Jean Genet - que também teve estreia aqui no CCB - e que entrecruza a utilização de textos referenciais contemporâneos e clássicos (Antígona de Sófocles, Kaspar de Peter Handke, Ginjal de Tchekov, O Banqueiro Anarquista de Fernando Pessoa) com uma abordagem performativa e a utilização de vídeo e som de forma a realçar o teatro enquanto linguagem artística herdeira das vanguardas e revoluções culturais do século XX. A utilização extensa e intensiva de tecnologias digitais surge sempre com um propósito de afirmar e materializar o poder da transformação, de remeter a existência para espaços onde a percepção e a crença nas coisas do mundo são abaladas e provocadas. Acreditamos na utilização da tecnologia como um forte veículo para a convivência contrastante e contraditória da poesia com a magia. O que procuramos é um efeito de estranhamento, quer no sentido crítico e ideológico, quer nos sentidos perceptivos e idealistas impostos pela necessidade de busca de uma atitude criativa e imaginativa da existência.
A encenação é um exercício de composição de complexidades. É um exercício de navegação sobre o caos e a imperfeição das coisas, é o desenvolvimento de capacidades cruzadas que permitem caminhar de encontro ao medo, até aos limites do suportável, em busca de territórios inexistentes, mapeando o existir. É uma questão física, um vagabundear por entre as vontades dos outros, entre mundos. Algo que se assemelha a uma imagem distante de um homem solitário, ou uma criança gigante que atravessa um imenso lençol de água com umas botas galochas alguns números acima do tamanho dos seus pés, chafurdando círculos de movimento no plano imóvel da superfície do pântano. Encenar é tomar decisões com base nos pés presos no chão, presos na lama invisível, o fundo do leito do lago, decidir para onde se dirige o próximo passo que pode ser fatal ou revelador com base apenas em certezas físicas que se localizam algures num corpo fugidio.
Muitas vezes procurámos definir territórios de trabalho que se avizinham, sem se uniformizar. Noções como coerência, marcação, equalização, iluminação, foram sendo substituídas por outras que soaram mais a propósito, tornando-se necessárias para os objectivos da obra. Surgiram termos imperfeitos e não necessariamente suficientes para substituir os termos anteriores: incoerência, fluidez, coragem, indiferença, desistência, perca, queda, desigualdades, contrastes, sombra, tecnologia, magia.