ACTORES, PERSONAGENS E SUAS FIGURAS DE SONHO

Uma das primeiras decisões tomadas foi utilizar um corpo de actores que é mais reduzido que o número de personagens da peça, o que vem sendo corrente nos meus trabalhos, conduzindo necessariamente ao desdobramento de papeis por cada um deles. Para o teatro enquanto espaço de investigação e criação artística que procuro desenvolver é essencial questionar: os limites da consciência e do “eu”; a multiplicidade de perspectivas de cada gesto e de cada palavra; as ressonâncias de um olhar interior em constante diálogo com os olhares exteriores e as alteridades perceptivas daí derivadas; as construções e destruições dos “mundos privados” em permanente oposição com os “mundos partilhados” que implicam e reflectem o constante revolucionar das posições do eu perante o mundo; a obrigatoriedade de lutar pela liberdade dos outros como condição para a ampliação e manutenção da liberdade individual; a compreensão que a noção de indivíduo enquanto limite indivisível e último a partir do qual se constrói a subjectividade começa a ruir e que por detrás disso se desconhece o que possa existir.

Assim, acabou por se decidir utilizar cinco actores, três mulheres e dois homens, a partir dos quais se fez a distribuição de papéis | figuras | personagens. São eles: Custodia Gallego, Paula Diogo, Sara Ribeiro, Miguel Moreira e Tonan Quito.

As personagens da peça foram distribuídas de modo desigual e contrastante, não respeitando equilíbrios nem equivalências literais. Os princípios que regeram essa distribuição foram primariamente funcionais e procuraram aprofundar contrastes que promovessem revelações e obscuridades. As relações de luz e sombra, de claro e escuro, de cheio e vazio, de visível e invisível, de objectivo e subjectivo sobrepuseram-se e determinaram as nossas escolhas. Tenho aliás cada vez maior dificuldade em denominar as personagens enquanto tal, porque o trabalho que fazemos está a afastar-se do que tradicionalmente se denomina de construção de personagem. Prefiro, apesar da imprecisão, a definição do Fernando Pessoa acerca dos seus heterónimos, a que chamava de “figuras de sonho”. Creio que o trabalho artístico que fazemos é mais próximo disso mesmo - da uma criação de um território indutor, de uma zona de ilusão, de uma concentração de ideias em movimento que servem de incubo para o sonhar acordado. A par desta ideia surge uma outra sugestão para o trabalho de construção de personagem assente no desenvolvimento do conceito de sombras que impulsionam a percepção do espectador a questionar-se sobre o que vê. Neste caso o actor desenvolve em si e com o seu corpo um potencial de assombrar a percepção de quem o olha. Assombrar, naturalmente, no sentido de impressão visual, de alteração de um estado prévio hipotético pela invocação ou sobreposição de uma outra figura que se apresenta ao olhar criador de quem vê.

Personagem | figura de Custodia Gallego | Mãe Coragem

A atribuição da personagem da Mãe Coragem foi pensada de vários ângulos. Num primeiro momento, foi pensada como uma personagem que seria pertença de todos os actores. Como uma personagem ou figura que seria partilhada e construída colectivamente. Esse estágio constituiu-se como uma interrogação, uma busca de imagens que despoletassem o movimento interior que se cria quando o procuramos por dentro deste sistema de referências texto | ideias | expressão física. Posteriormente compreendemos que a figura da Mãe Coragem precisa de funcionar como um eixo a partir do qual se pudesse explorar a desconstrução e a fragmentação de caminhos e sentidos que ambicionávamos para a peça. A partir daí impunha-se a escolha de uma personalidade ímpar que tivesse o ímpeto e a capacidade de abrir portas para o futuro, arrastando consigo um passado que canta e fere a cada momento. Nela as feridas tornam-se de imediato cicatrizes e o sentir é um esgar fantasma que espreita por detrás de um sem fim de máscaras de sobrevivente.

Personagens | figuras da Paula Diogo

A Paula assume um conjunto de figuras militares com diferentes ressonâncias nas cenas, mas sempre ligadas ao poder da hierarquia e da instituição castrense. Assume uma figura feminina de grande importância, a Yvette, pelo sentido de oportunidade e força fraca que apresenta, aparecendo como alguém que se movimenta nos espaços invisíveis com uma agilidade e conhecimento próprios de um sobrevivente de longa data. É uma figura-vertigem, com uma forte componente de atracção e repulsa, pois transporta consigo um abismo que Mãe Coragem pretende evitar que atraia a sua filha Katrin afastando-a do mundo da prostituição. Faz ainda uma outra personagem figura na cena final que é um aglomerado de perspectivas de camponeses que são acossados por um grupo de militares que sobre eles exercem uma forte brutalidade e prepotência e aos quais não podem escapar. A desmultiplicação pedida à Paula Diogo é a que atinge maior expressão. Abrange a mudança de género, a criação e desenvolvimento de vários graus de poder que vão desde o mais fanático religioso até ao poder amnésico e tirânico, passando pela transformação destrutiva atribuída ao poder ganancioso ou sem propósito. Todos eles surgem de formatações aceites socialmente que, nos labirintos da existência, se transformam e abusam das competências para as quais foram gerados.

Sargento uma personagem dupla; figura dúplice na sua estrutura pois condensa perspectivas contraditórias e vontades díspares entre si de um recrutador de novos militares e um sargento com todas as suas conotações com o poder que são também eles um súmula de impulsos
Comandante do Segundo Esquadrão Finlandês que representa o poder que aceita em seu nome e proveito as maiores barbaridades dando-lhes inclusive estatuto de honrarias | com Eilif na estrutura
Yvete a prostituta que por amor abandonou a sua terra em busca do seu primeiro amor | uma cena sobre o feminino e o seu poder e força
Yvete uma segunda aparição fugaz em que nos traz o sentimento de que o acaso pode mudar o curso dos acontecimentos de modo totalmente imprevisível incluindo o caminho da vida
Sargento Torturador que traz uma nota de polícia política de algo que se assemelha aos demónios e temores que nos assaltam e que nos trazem a sensação de fragilidade enquanto indivíduos perante as forças colectivas | cena com Queijo Suíço em cima da estrutura como o Comandante pois personifica também ele todas as formas de poder invisível e oculto desmaterializado numa única voz
Yvete uma terceira aparição como cúmplice da Mãe Coragem que procura através dos favores obtidos junto de um coronel conseguir dinheiro que permita subornar os carcereiros e carrascos do Queijo Suíço apanhado a fugir com o cofre do regimento
Soldado Bêbado personifica o caos e a destruição o desvanecimento do corpo num estado de guerra e o apelo da morte e da destruição enquanto constituinte da natureza humana
Yvete ultima aparição para dar conta do desfecho final da sua vida e para encontrar-se de novo com o seu primeiro amor
Soldado Carcereiro que leva Eilif para a morte como um autómato sem memória e sem consciência de que atrás das coisas do tempo actual existem outras coisas que a falta de memória transforma numa insensibilidade e cegueira desumana
Camponesa é uma síntese súmula de almas atormentadas e acorrentadas ao seu destino e ao lugar onde vivem uma figura que representa o impulso acorrentado ao lugar uma imposição social e política para a sedentarização que é também sinónimo de vulnerabilidade e instabilidade em caso de guerra. A duplicidade de ser em simultâneo testemunha e participante, vítima e carrasco é um dos pontos de desenvolvimento destas personagens | figuras

Personagem | figura de Sara Ribeiro

A Muda é uma personagem espelho pois só existe enquanto reflexo das outras e do seu próprio mundo interior ao qual se tem um acesso limitado. Assim, acaba por ser uma figura que tem um pouco de todas as outras e perde por vezes os contornos precisos dos limites da sua personalidade e dos seus desejos e impulsos. Tudo o que sabemos dela tem necessidade de ser traduzido por terceiros ou implica interpretação simultânea. É um personagem com uma carga simbólica que a aproxima de algumas outras personagens clássicas, dado a sua dimensão trágica e a capacidade que demonstra de sacrifício em benefício dos outros. A sua presença durante a peça é omnipresente seja através da acção directa ou seja como uma espécie de sombra latente. A sua importância é, no entanto, capital pois é através dela, das suas acções e decisões, que se consuma e desfecha a peça.

Personagens | figuras de Miguel Moreira

A desmultiplicação de figuras que Miguel Moreira assume tem como pano de fundo a transformação e a luta entre o humano e a natureza. É um personagem voraz que assume um conjunto de referências históricas e teatrais que o remetem constantemente para fora de si e do seu mundo privado. É como se apenas existisse enquanto caminho para as histórias dos outros. O seu ritmo próprio, a sua latência constante, leva-o a entrar em choque constante com os outros impondo uma nuvem de imagens ao seu redor como se fosse uma espécie de álbum humano de memórias vivas e em movimento.

Eilif é um dos filhos da Mãe Coragem, o mais audaz e que revela um perfil mais adaptado à situação de guerra. Vai desenvolvendo um desejo secreto de se alistar e de ser soldado e viver sob umas regras que exaltam as suas características pessoais de aventureiro e destemido. É o primeiro a assumir este seu desejo e a fugir à tutela da mãe para se alistar. É também logo de seguida protagonista de uma primeira acção espectacular de roubo de bois aos camponeses inimigos que é considerada heróica.
Capelão é uma personagem excepcional que sofre uma profunda transformação ao longo da peça. Aparece-nos como um homem de fé, que perde as suas referências por motivos da guerra, associando-se num momento de ventos de mudança ao grupo que vive dependente da carroça, funcionando como seu empregado e conselheiro. No final vai abandonar a sua profissão e transformar-se num vagabundo numa clara menção religiosa de regresso a uma austeridade espiritual e material.
Eilif a sua segunda entrada é simbólica e dá-nos uma leitura da mudança de perspectiva e de leitura de uma mesma acção em contexto distinto. O que tinha anteriormente um valor de honra e de distinção toma o sentido, numa outra situação e contextualização, de uma ruptura socialmente reprovada e com custos pessoais.
Soldado este soldado é funcional e simbólico, representando uma sombra ou fantasma como um morto que se ergue entre os vivos para os recordar da sua condição de finitude.

Personagens | figuras de Tonan Quito

As personagens do Tonan Quito são uma espécie de fios de uma mesma trança, que se constroem e desenvolvem numa conjunção de perspectivas que as complementam. As parecenças e diferenças entre o Queijo Suíço e o Cozinheiro soam evidentes assim como o abismo destrutivo do Alferes anjo negro. Em todos existe uma propensão para a morte e para a queda.

Queijo Suíço é o filho honesto e bem comportado que também quer ser soldado mas é incapaz de o dizer abertamente. Encarna de imediato uma necessidade de protecção que se irá tornar trágica, apesar da sua enorme humanidade.
Cozinheiro a entrada em cena do cozinheiro tem como propósito descarnar a importância e o poder das hierarquias e dos níveis de entendimento do mundo entre seres que co-habitam em proximidade mas que os seus mundos quase nunca se cruzam. Dá-nos ainda a consciência da importância da história e das usas imbricações no passado como factor de compreender o presente e o futuro. É a sua acção também uma mistificação da memória e do que passou, que possibilita que se assumam máscaras sucessivas paradoxais entre si e que representam valores opostos.
Queijo Suíço a sua morte dá-nos uma leitura de que a fragilidade é um elemento que o mundo e as consequências da guerra tornam mais visíveis e que se pagam com a própria vida.
Cozinheiro nesta segunda aparição, onde o seu passado se ilumina e se dá conta das suas máscaras, apercebemo-nos também da sua humanidade, que se mistura com a crueldade e instinto de sobrevivência. Desaparece num mar de sombras despedindo-se com uma moral essencial: “isto não tem de ser assim”.
Alferes um anjo negro e vingador que em desvario solta as forças da destruição que eliminam tudo ao seu redor, indiscriminadamente, em nome da sobrevivência do vazio e da falta de razão.